8.10.10

Tradição

"Tradição (do latim: traditio, tradere = entregar; em grego, na acepção religiosa do termo, a expressão é paradosis παραδοσις) é a transmissão de práticas ou de valores espirituais de geração em geração, o conjunto das crenças de um povo, algo que é seguido conservadoramente e com respeito através das gerações.
A tradição e sua presença na sociedade baseiam-se em dois pressupostos antropológicos:
a) as pessoas são mortais;
b) a necessidade de haver um nexo de conhecimento entre as gerações."...


Não há dúvidas de que a tradição vai muito além dessa breve definição, preguiçosamente copiada da Wikipédia.
Para nós mortais, religiosos ou não, o significado de tradição passa por castas, famílias, classes sociais...Enfim, por todos aqueles que, de alguma forma consideram-se especiais diante dos outros pobres mortais. Aliás, mais pobres e mais mortais do que eles próprios.

A família entra como um parágrafo a parte quando o assunto é tradição. Algumas famílias sentem-se mais tradicionais do que outras. A escala de medida não é bem clara, mas mesmo assim elas conseguem diferenciarem-se, qualificando a si próprios, enquanto desqualificam os outros.

Alguns enchem a boca para pronunciar seus sobre-nomes italianos: "Antognoni", "Farfareli", "Fidelini", "Falconieri"...Na verdade descendem de pobretões que vieram ocupar com grande vantagem e incentivos, os lugares deixados pelos pobres escravos negros, largados na sarjeta. Embora não conhecessem nada do riscado da cafeicultura, eram mais branquinhos e bonitinhos do que aqueles "crioulos horrorosos" (Não consigo enxergar outro motivo para tal sacanagem). Já há outros que capricham no biquinho para pronunciar "Fechecler", "Abajour"...Enfim, tradicionalíssimos de grande e nobre estirpe.

Mas existem aqueles que, inconformados com sua falta de "berço", não exitam em apelar ao casamento, na busca incansável da "tradição". Nesse caso, vai aí a possibilidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Afinal, linhagem é linhagem, não importando se o acesso à "tradição" se dá pela entrada da frente ou pela saída de trás.

O meu caso não foge a essa regra.
Totalmente sem tradição, minha família teve seu início a partir de um português sem sobre-nome.
- Qual o seu nome meu senhor?
- Antônio José...
- Mas Antônio José de quê?
- Antônio José de nada ó pá.
- Antônio José de Nada é o nome completo? O sobre-nome é "Nada"?
- Não, o sobre-nome é nenhum.
- Afinal, qual o seu nome completo?
- Ó pá, é Antônio José e ponto final, mas sem escrebere o "ponto final". Está bem entendidinho?
- Então vamos tentar a sua filiação. Nome do seu pai?
- José Antônio.
-...De quê?
- Só isso
- ?!? Tá de sacanagem portuga? Nem quero saber o nome de sua mãe.


Não preciso dizer que hoje, alguns de seus decendentes retorcem-se na busca de alguma junção matrimonial que os "tradicionalize". Outros tentam desesperadamente arquitetar algum sobre-nome que se encaixe na história de meu avô. Teria sido Pato? Ou Pereira? Quem sabe Oliveira?

De onde veio, de que família pertencia, onde nasceu...Dele só se sabe que era um tripeiro. Não no sentido tripeiro, nascido no Porto (para quem não sabia dessa, vale a curiosidade), mas o tripeiro que vende tripas, miúdos do boi...não os miúdos no sentido dos "filhos dos bois portugueses", mas no sentido das vísceras do bicho.
O que se sabe é que, aproveitando-se de uma época em que o homem da casa não tinha satisfações a dar, meu avô iniciou a família "José Ninguém".
...E assim espalhou suas sementes pelas terras brasileiras, mais precisamente em Turiaçú, entre Madureira e Rocha Miranda, no subúrbio do Rio de Janeiro.

O que se fala sobre Antônio, dá conta de um bom homem, trabalhador honesto e pai dedicado, mais nada (o que já me basta).
Sua cidade portuguesa de nascimento segue como uma incógnita. Suas reconhecidas presteza, bondade e simpatia, de certa forma o protegeram de especulações maldosas, que certamente seriam feitas a respeito de sua reduzida alcunha.
Mas eu, como descendente e herdeiro de sua cepa, por direito de neto, serei inconseqüente e arriscarei em especular:
Teria Antônio José emprenhado alguma galega e partido para o Brasil, abdicando do sobre-nome para não ser localizado por um pai furioso?
Faz sentido...
Ou tudo isso, mas no lugar do pai furioso, um marido traído?
Faz mais sentido ainda...
Ou teria dado um calote na praça lusitana e fugido para o Brasil de modo a usufruir dos benefícios do golpe?
Considerando sua vida inicial em Turiaçú, num canto da casa que minha avó dividia com suas irmãs...Se foi golpe, foi mal sucedido.

A verdade mesmo de toda essa história, é que o bom Antônio José construiu uma família sem nenhuma tradição. A família "José Ninguém", cuja maior tradição é exatamente essa...Não ter tradição alguma.
Então? Vamos continuar assim? Vamos manter nossa tradição secular?

Enfim...Tradição é isso.


Marcos Santos

Fotografia: Gravura sobre a tradição em família, de Gordon Lawson

2 comentários:

joshua disse...

Meu caro Marcos, adorei este texto.

Durante muito tempo, o Brasil serviu de doce recomeço e escapatória para muitos portugueses rebeldes, aventureiros, foragidos aqui do tristonho pedaço de terra.

Na minha família, a tradição está bem e recomenda-se: tenho nos nomes dos avós todos os vestígios da passagem do tempo. "Morgado" = judeu terra-tenente. Dias = talvez um braço castelhano ou galego. Silva = mais sangue judeu. Rocha = tem brasão mas cheira a mais sangue judeu. Rodrigues = mais ramificação castelhana. Martins = ramo visigodo, sei lá. Santos = orfandade e apadrinhamento eclesial. Nogueira = mais sangue judeu.

Como vês, está aqui muito e nada. Mas aquilo que me apresta dizer sobre o teu avô é que as tuas investigações ainda estão no início. Com um pouco de paciência, ainda vais desenterrar, para efeitos de romance, tudo o que lhe diga respeito por terras portuguesas de Ílhavo, Ovar, Estarreja, Aveiro. Esperam-te arquivos poeirentos, seculares, registos de propriedade, assentos de nascimento, de óbito e casamento.

Não escapas de uma larga temporada a desenterrar o teu sangue. Isto porque simplesmente não existem José Ninguém, dão é um trabalho tremendo a colar à raiz.

Quando vieres, terás onde ficar. Terás com quem conversar. Se demorares muito, talvez possas fazer tudo isso sobre registos digitalizados, arquivos transpostos para estruturas virtuais e consultáveis ubiquamente, o que certamente te não seria a mesma coisa: um copo de vinho aqui na terra, um friosinho outonal aqui na terra, uma refeição portuga aqui na terra ISSO É OUTRA COISA.

Um grande Abraço, Marcos Tripeiro de Portugal Alguém.

Mariano P. Sousa disse...

Caro amigo Marcos!
Um belo texto, falando de um assunto sério, mas com um toque sutil de humor.
Eu ca também que tenho minhas raízes luzitanas faço as mesmas indagações.

Grande abraço!

Bom dia. fotografia, natureza, NatureBeauty, riodejaneiro, recreiodosbandeirantes, photooftheday, photography