11.6.08

Miroslav Zavodski - O Carioca da Gema


A brasilidade é um fenômeno interessante. Mais interessante ainda é verificar que ela pega, contagia, irradia.

Miroslav, Miro como nós o chamávamos, era um Tcheco fugido dos tentáculos do regime totalitário Soviético.

Tendo passado por uma jornada impressionante durante sua fuga, Miro somente chegou ao Brasil uns cinco anos depois.  Aqui se estabeleceu,  inicialmente na Urca, onde tomou gosto pela pescaria e posteriormente no Méier, no subúrbio do Rio de Janeiro.
Ali no Méier, Miroslav, mais do que aprender e assimilar os costumes brasileiros, passou a ser, apesar de seu forte sotaque, um autêntico carioca.  É nesse ponto que quero chegar.

Já estávamos prontos para irmos à casa do Dutra. Naquela época apenas Miro tinha carro, um Chevette 74 todo enferrujado. Era comum sairmos juntos às sextas feiras, após o expediente, para tomarmos uma cervejinha. Faltava apenas o “Botão”, um "crioulo" enorme e com uma careca lustrosa, redonda como um botão de paletó. Daí o apelido.

Botão era o encarregado de toda a usinagem e era um homem extremamente educado, além  de muito gentil. Dificilmente perdia as estribeiras, apesar de sua grande responsabilidade e do grande número de pessoas sob seu comando. Mas sempre há uma primeira vez.

Observando que  Pedro Paulo, Genésio e eu, havíamos chegado cedo ao estacionamento, Miro pediu que fôssemos nos acomodando no banco de traz do Chevette.
Alguns minutos depois foi a vez do “Botão” chegar. E chegou tão arrumado e cheiroso que ninguém poderia supor que iríamos ao Morro do Jacarezinho, comer o sarapatel da mulher do Dutra, uma nordestina de mão cheia na arte da cozinha.

Dutra era um fresador português, que nas horas vagas fazia agiotagem para a peonada e nos fins de semana vendia um ou outro porco de seu criatório. O sarapatel, especialidade de sua esposa, era apenas um chamariz para atrair fregueses ao morro, de modo a comprarem os despojos do pobre suíno.

Voltando ao Chevette, lembro-me que minhas pernas estavam apertadas pelo banco do carona. “Botão”, que era um sujeito da minha estatura, aproximadamente 1,82m, gostava de espaço, o que explica o meu aperto. Mas tudo bem, estávamos prontos para uma bela seção de sarapatel com chouriço e muita cerveja gelada.

Miro não chegou a dar a partida no carro. Olhou fixamente para o “Botão”, que já estava sentado no banco do carona, pensou durante alguns instantes e finalmente fulminou com seu sotaque tcheco:
- Meu caro “BOTON”, passa para banco de “trax”.
“Botão” amarrou a cara, franziu o cenho, não deu um pio, levantou-se e inclinou o banco para que eu pudesse trocar de lugar com ele. Assim o fiz.
Dali para frente o clima foi péssimo. "Botão" com a cara fechada e o Miro, "mudo", fingindo que não era com ele.

Agradeci aos deuses quando saímos daquele carro de clima nublado  e pudemos finalmente nos deleitar com as gostosuras gastronômicas da mulher do Dutra. E foi bom demais...enquanto durou.

E como tudo o que é bom dura pouco e tudo que é bom  demais dura um piscar de olhos, era chegada a hora do suplicioso  clima  do Chevette. Uma vez que Miro e Botão não se falaram durante o “Happy Hour Suíno”, era lógico imaginar o clima mais carregado ainda na volta. 

E foi o que aconteceu... 
Para cada palavra pronunciada por Miro, uma “alfinetada” cortante era desferida pelo “Botão”. Era realmente um “saco”. Uma situação ruim de aturar. Cheguei a pensar na possibilidade de terminar a descida do Morro do Jacarezinho a pé, mas o excesso de zelo por minha vida impediu. Afinal, quem gosta de andar em favela é turista e  intelectual. Eu não era nem uma coisa e muito menos a outra.

Quando finalmente chegamos ao pé do morro, onde nos separaríamos e cada um seguiria seu rumo, aconteceu um fato curiosíssimo e que objetiva toda essa ladainha: A brasilidade aflorada. Melhor ainda, a carioquice na sua principal característica, que reside fundamentalmente no estado de espírito, no jeito de ser e nas alternativas encontradas para certas situações, independente da naturalidade ou nacionalidade do cidadão. É como diz a música: "Cariocas são espertos, cariocas são bacanas, cariocas são sacanas..."

“Botão”, engasgado com a atitude do Miro, magoado por sentir o peso do preconceito de cor demonstrado pelo amigo Tcheco, finalmente botou suas angústias para fora e “fuzilou”:
- Miro, seu filho da puta. Você tem preconceito com “preto”, você não gosta de “preto”. Vocês vêm para o Brasil, fazem a vida e ainda se acham no direito de botar banca com os negros. Seu branco de merda.

Miro não se abalou. O que deixou o “Botão” ainda mais irado.
- Responde seu safado! Responde racista! Vamos!

Miro estacionou calmamente o Chevette 74, desligou a ignição e com sua singeleza soltou a seguinte pérola carioca e sotaque tcheco:
- Bom meu caro, problema "seguintch". Eu gosto de “negon”. Meu mulher é “paraibinha”. Eu "non" ligo. Gosto muito de “BOTON”. “BOTON” é meu chapa pra  caramba. Problema é polícia.

“Botão” retrucou, impaciente. – O que tem a polícia?

-Bom meu caro, problema "seguintch" (continuou Miro). Esqueci todos os documentos no "meu" casa, inclusive do carro. Quando vi tremendo “negon” do meu lado pensei: “Polícia não vai perdoar “negon” no banco do"frentch", subindo morro.” Foi só isso, nada contra “negon”.

Nesse momento todos nós, inclusive eu, ficamos impacientes e gritamos com ele: – E porque você não falou antes com a gente ?

- Bom meus caros, problema "seguintch" (concluiu o Tcheco). "Meu" mulher queria sarapatel com chouriço e eu "non" tinha "colhon" de subir morro sozinho e sem documentos. Se conto, ninguém ia comigo.

Sinceramente, acredito que essa resposta não tenha deixado o “Botão” satisfeito. Mas quando recordo dela, sinto saudades do tempo em que eu compartilhava da companhia de Miroslav Zavodski, um brasileiro que nasceu na Tchecoslováquia. Um tomador de cerveja com chouriço e sarapatel no alto do Morro do Jacarezinho. Um autêntico "Carioca da Gema”.


Marcos Santos
Rio de Janeirohttp://vemproquiosque.blogspot.com.br/2012/07/miroslav-zavodski-o-carioca-da-gema.html?spref=fb

6 comentários:

Luma Rosa disse...

Marcos, eu acredito no Miro!! Mas essa sua história me fez lembrar de outra, de um mineirinho lá da minha cidade natal. Ele morava no Rio e em pouco tempo estava falando o carioquês, até mesmo os cariocas perguntavam "Você é mesmo mineiro?" Até que um dia armaram uma "pelada" e na empolgação, estavam quase marcando gol, ele soltou a pérola "carcanha, carcanha!" Não preciso dizer que ele é motivo de piada até hoje em Pouso City. Bom fim de semana! Beijus

Jens disse...

Gostosa história, Marcos. Você escreve num estilo que dá prazer de ler. Vim aqui por indicação da Luma e não perdi o meu tempo. Valeu.
Um abraço.

♥ Denise BC ♥ disse...

Adoro esse crônica.

Anônimo disse...

Que legal, naquele momento ele tentou imaginar a situaçao como um brasileiro.
Gostei do jeito dele falar, parece meu marido, rs é divertido ver meu marido falar portugues cheio de girias.
Bjs
Meire

Anônimo disse...

Meu Deus. Não pode haver 2. Conheci seu Miro na Cisper da Amazônia em Manaus. A marca registrada de seu Miroslav Zavodski era se dirigir as pessoas como "oh meu caro".. Era fascinante suas opiniões e suas histórias e argumentos.
Meu nome é Ozeas Fonteles

Marcos Santos disse...

Que bacana Ozeas!! O Miro foi meu mentor na Cisper. Trabalhei com ele nos anos 80 aqui no Rio. Saí de lá pouco antes da mudança para Manaus. Ele me transformou num grande conhecedor de equipamentos de moldagem, que era a sua especialidade. Sinto muitas saudades daquele tempo.

Fico feliz que tenha gostado da crônica, pois é baseada em fatos verídicos.

Um abraço

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