24.2.08

Feito nas Coxas - Uma História Urbana

Quando dirijo e vou percorrer grandes distâncias, gosto de ligar meu “piloto automático”. O modo mais fácil, é ocupar minha cabeça com assuntos que não digam respeito ao trânsito.

Normalmente mentalizo o percurso e em seguida faço jogos com as palavras, expressões, contas, etc....Quando me dou conta, já pensei diversos assuntos e a distância já foi percorrida num estalar de dedos.


Outro dia, estava a caminho de um parceiro comercial, cuja empresa fica na região Central do Rio de Janeiro, mais precisamente no Bairro da Saúde, quando uma retenção do trânsito, obrigou todo o tráfego a desviar-se pelas redondezas do morro do Santo Cristo. Começava ali um roteiro turístico pelas ruelas da Gamboa e adjacências.

Como estava em meu estágio de “piloto automático”, divagando sobre a toponomia carioca, de repente me percebi analisando expressões da linguagem brasileira e seus significados: “chapa quente”, “demorô”, etc...

Num dado momento, ainda no percurso das ruelas, paro em um semáforo. Bem defronte ao sinal estava um casarão antigo, na verdade muito antigo, do tempo do Brasil Império.
Fitei o prédio de cima abaixo, até que duas mulheres paradas na porta, chamaram minha atenção.
As duas, alvas como as mulheres nórdicas, e com trajes que deixavam suas coxas fartas e roliças totalmente à mostra.


Nesse exato momento o sinal abriu, dei mais uma olhada no casarão, do teto ao chão, e já saí divagando sobre outras expressões de linguagem. A primeira que me veio foi exatamente inspirada nas mulheres alvas: “feito nas coxas” foi a expressão.
Interessante é perceber que certas palavras ou expressões tem a capacidade de trilhar caminhos próprios e acabam por desvencilharem-se do verdadeiro motivo que as gerou.


Hoje sabemos que o significado da expressão “feito nas coxas” equivale a "feito de qualquer maneira", ou "feito sem capricho". É claro que a vinculação sexual da expressão é mais que compreensível, algo como um coito não finalizado, terminado ainda no prelúdio. Faz sentido. Realmente faz sentido, mas não é verdade.


Uma das hipóteses, para a origem dessa expressão, está muito mais ligada ao sofrimento de um povo do que se possa imaginar.


Até o Século IXX, as telhas das casas eram feitas de barro moldado nas coxas dos escravos, manualmente, uma a uma. É claro que cada pessoa tem suas individualidades anatômicas, e as coxas não fogem disso. Ou seja, cada pessoa fazia o seu padrão de telha. A expressão surgiu daí. “Feito nas coxas”, ou feito sem padrão de qualidade.


Mas o interessante para mim foi observar que cada peça, cada telha, guarda a marca individual do escravo que a confeccionou: seus pêlos, seus feixes de músculos, seus joelhos. A parte de cima guarda suas digitais. Digitais que prensaram a massa de barro sobre as pernas, sobre as coxas cansadas.


De cima do morro do Santo Cristo, alguns dos descendentes desses homens, observam os telhados do casario antigo. Não têm idéia que aquelas telhas guardam marcas de seus antepassados. Marcas reais, marcas estampadas de seus corpos. Digitais impressas, de um tempo de sofrimento e injustiça para seu povo. Mas eles continuam lá, nas senzalas modernas, sem o direito sequer, de conhecer sua própria história.

Marcos Santos

Rio de Janeiro

3 comentários:

Luma Rosa disse...

Marcos, que agonia a foto abaixo! Aff!!
Boa semana!! Beijus

Luma Rosa disse...

Vi o Banner do Amigos da Blogosfera e lembrei de avisar; tem blogagem coletiva dia 08 - veja a chamada lá no AdB.

Tiago R Cardoso disse...

Brilhante.

Bom dia. fotografia, natureza, NatureBeauty, riodejaneiro, recreiodosbandeirantes, photooftheday, photography